Autismo & linguagem aceitável

A utilização correta da linguagem de um modo não ofensivo é uma obrigação de toda a sociedade.

É frequente a utilização da palavra autista/autismo de um modo inadequado e, por vezes, mesmo ofensivo.

Neste texto, não vamos analisar o uso inapropriado e muitas vezes ofensivo por políticos, jornalistas, magistrados e outros que, com frequência e infelizmente, ouvimos ou lemos nos meios de comunicação social.

Vamo-nos concentrar no que é hoje aceitável, quer pela comunidade autista, quer pela rede alargada de pessoas que com ela interage e as sociedades que a representam.

Há diferenças e zonas cinzentas na linguagem utilizada, com uma clara influência sociocultural e da comunidade em que estamos inseridos. As perceções da linguagem médica, com a sua tentativa de normalizar e classificar, nem sempre vão ao encontro dos pontos de vista, das perceções das pessoas com autismo e dos seus familiares. As subtilezas linguísticas podem, por vezes, levar a conotações negativas da linguagem em alguns contextos.  

Nos últimos anos foram realizados vários estudos [1], [2] sobre a linguagem aceitável relacionada com autismo, sustentados na opinião das pessoas com autismo, dos seus familiares e de profissionais que trabalham com eles. Também várias organizações, de que se destaca a Autism-Europe, se têm pronunciado sobre a linguagem aceitável.

A comunidade autista, que inclui pessoas com autismo, a sua família e amigos e a rede de suporte, tem debatido o modo como nos devemos referir às pessoas com autismo [3], [4]. Em geral, esta comunidade prefere a utilização dos termos “autista”, “pessoa autista” ou “indivíduo autista” porque se depreende que a característica “autismo” faz parte da individualidade da pessoa. Acima de tudo, é importante utilizar o termo “pessoa” em primeiro lugar dando assim ênfase à importância da pessoa. É impensável ouvir alguém, quer seja um auto-representante, um pai, um professor ou outro, a referir-se a uma pessoa com autismo como “a criança autista”, “aquela criança com autismo”, etc. A forma correta é que todos se refiram àquela pessoa em concreto pelo seu nome. Outra expressão que tem sido discutida e que tem levado a opiniões diferentes quanto ao seu uso é “pessoa com autismo”. Quando dizemos “uma pessoa com autismo” estamos a subentender que podemos separar o autismo da pessoa, o que não é verdade. Uma vez que o autismo advém de alterações no neurodesenvolvimento, não se trata de uma doença.  Trata-se de uma condição, com a qual o indivíduo nasce, de carácter permanente, podendo estar associada a características (ou a outras condições) que podem condicionar a qualidade de vida do indivíduo mas, por si só, não causa nem dano nem é responsável pela morte. O autismo é, acima de tudo, uma condição que afeta o modo como o mundo é percecionado. Quem defende a não utilização desta expressão argumenta que ela significa que o autismo é uma “coisa” que pode ser removida, que pode ser desagradável ou não desejada, e que à parte disso essa pessoa é “normal”. Pelas razões enunciadas a utilização da expressão “pessoa com autismo” é aceite por cerca de 20% das pessoas com autismo e seus familiares, embora seja aceite com maior frequência pelos profissionais (Kenny 2015).

Em 2015 foi publicado um estudo para tentar responder às diferenças de opinião sobre como o autismo deve ser descrito (Kenny, 2015). Este estudo foi efetuado entre dezembro de 2013 e fevereiro de 2014, no Reino Unido, e envolveu adultos autistas (n=502), pais de pessoas com autismo (n=2207), profissionais (n=1109) e outros membros da família e amigos (n=380). Este estudo tem várias limitações de que são exemplos importantes: a inclusão em cada grupo dependeu de como a pessoa se autoclassificou; o ter sido efetuado online; a metodologia de seleção das pessoas incluídas (método da “bola de neve”, em que por publitação por várias organizações as pessoas é que se propunham a entrar no estudo), o que pode ter sobredimensionado alguns subgrupos (por exemplo cerca de 60% dos autistas que responderam são do sexo feminino). Outra limitação a ter em conta é que traduz a opinião anglo-saxónica que, em muitos aspetos, é diferente da dos países do sul da Europa. Neste estudo os termos preferidos, especialmente pelas pessoas autistas e pelos seus familiares, foram: “pessoas autistas” ou “pessoas no espetro do autismo”. Neste estudo muitos outros termos ou expressões foram avaliados e muitas das recomendações quer da National Autistic Society quer da Autism-Europe resultaram das suas conclusões.

A Autism-Europe publicou normas [5] em que são elencados termos ou expressões que podem ser considerados ofensivos (e, como tal, que não devemos utilizar) e alternativas aceitáveis. Também a National Autistic Society tem recomendações claras em relação à utilização da linguagem aceitável . Deixamos para outra ocasião uma explicação mais detalhada das razões que levam a desaconselhar o uso de algumas expressões. Muitas destas expressões passaram a ser desaconselhadas após estudos efetuados para saber a opinião das pessoas com autismo, das suas famílias e das organizações que as representam e da aplicação da Convenção das Nações Unidas para as Pessoas com Deficiência.

A seguir apontamos algumas expressões que não são recomendadas e algumas alternativas aceitáveis, sabendo contudo que ainda há muito trabalho a fazer nesta área e em relação a muitas das expressões não há um consenso sobre a sua utilização.

Expressões que NÃO DEVEMOS UTILIZAR:

• Sofre, é portadora ou vítima de autismo;

• Autismo de Kanner;

• A síndrome de Asperger é uma forma ligeira/leve de autismo;

• Autismo grave/ligeiro;

• O autismo é uma doença;

• Pessoas vivem com autismo;

• Alto funcionamento/ baixo funcionamento;

• Pessoas/crianças com desenvolvimento normal.

Expressões que DEVEMOS UTILIZAR:

• É autista;

• Está no espetro do autismo;

• Pessoa com autismo;

• Tem uma condição do espetro do autismo;

• O autismo é uma condição;

• O autismo pode ser uma incapacidade;

• Algumas pessoas com autismo têm dificuldades de aprendizagem;

• Algumas pessoas com autismo necessitam de apoio nas atividades da vida diária;

• Algumas pessoas com autismo têm capacidade de trabalho normal e necessitam de pouco apoio;

• Neurotípico;

• Crianças/adultos com desenvolvimento típico.

Muitos profissionais continuam a utilizar a expressão médica do DSM5 “Perturbações do Espetro do Autismo”.
A comunidade autista considera que a utilização do termo “perturbação” tem uma conotação negativa e propõe a sua substituição pela expressão “Condição do Espetro do Autismo” ou “Pessoa no Espetro do Autismo”.

Tendo a consciência de que esta problemática está longe de estar encerrada, procuramos contribuir para uma discussão alargada, a fim de que em Portugal também sejam criados consensos sobre a linguagem aceitável, e realizados estudos sobre a opinião dos diferentes grupos sobre estas matérias.

4 de julho de 2022
Fernando Campilho,
Presidente do Conselho Executivo da FPDA

[1] Lei, J., et al. (2021). Exploring an E-Learning Community's response to the language and terminology use in autism from two massive open online courses on autism education and technology use. Autism, 25(5), 1349-1367.
[2] Kenny, L., et al. (2015). Which terms should be used to describe autism? Perspectives from the UK Autism Community.
Autism, 1, 1-21.
[3] Brown, L. (2011). The significance of semantics: person-first language: why it matters, 4 August. Disponível em:
https://www.autistichoya.com/2011/08/significance-of-semantics-person (acedida em 20 junho de 2022).
[4] Brown, L. (2011). Identity and Hypocrisy: A Second Argument Against Person-First Language, 11 November. Disponível em:
https://www.autistichoya.com/2011/11/identity-and-hypocrisy-second-argument.html (acedida em 20 junho de 2022).
[5] Autism-Europe:
https://www.autismeurope.org/about-autism/acceptable-language/#_ftn1 (acedida em 9/6/2022)
[6] NAS:
https://www.autism.org.uk/what-we-do/help-and-support/how-to-talk-about-autism (acedida em 27/6/2022)

Partilhar
Continuar a ler mais notícias

Subscreva a nossa Newsletter!

Receba regularmente notícias da Federação Portuguesa de Autismo.