Um longo caminho percorrido de Leo Kanner ao ICD11: Autismo - 1943 a 2022

Ao longo destes quase 80 anos uma grande evolução de conceitos tem ocorrido. O reconhecimento de que o autismo abrange um grande espectro de situações, é explicitamente reconhecido no DSM-V. Quais os limites que levam a considerar uma Pessoa como Autista? Este é um debate que continua e cuja definição ainda não está resolvida.

Em 1 de janeiro de 2022 vai entrar em vigor a 11ª versão da classificação internacional das doenças (ICD-11), apresentada pela primeira vez em 2018. Um longo caminho foi percorrido no conceito médico do autismo desde a 1ª descrição de Leo Kanner da “Perturbações Autísticas do Contacto Afetivo” [i]. Ao longo destes quase 80 anos uma grande evolução de conceitos tem ocorrido. O reconhecimento de que o autismo abrange um grande espectro de situações, é explicitamente reconhecido no DSM-V. Quais os limites que levam a considerar uma Pessoa como Autista? Este é um debate que continua e cuja definição ainda não está resolvida. Kanner reconheceu que os pais de muitas crianças autistas tinham também eles características que se poderiam considerar “diferentes”, relacionando-se melhor com conceitos do que com pessoas; Kanner descreveu estes pais como sendo “autistas com sucesso” [ii].

De seguida apresentamos um sumário dos passos que têm sido seguidos desde a descrição inicial de Kanner.

Leo Kanner: 1943 [iii]. Em 1943 Kanner descreveu 11 crianças com um “isolamento autístico extremo”, ecolalia atrasada e um desejo obsessivo de manter a monotonia”; muitos têm capacidades de memória extraordinária.

Décadas 50-70: o autismo foi encarado como uma apresentação precoce de esquizofrenia da criança [ii], uma perturbação emocional dependente da relação psicodinâmica pais-filho; não existia então nenhuma definição consistente de autismo; os psicanalistas tinham criado a palavra “autístico” para descrever a rejeição da realidade dos doentes esquizofrénicos; os psicanalistas argumentavam que o autismo representava a resposta da criança a uma mãe fria e distante. O DSM-II apenas mencionava o autismo no contexto da esquizofrenia infantil, definido em termos muito vagos. Estes conceitos, completamente erróneos, de culpabilização das mães, muito sofrimento causaram durante várias décadas.

Década 70: declínio do paradigma psicogénico; considerado que o autismo tem uma base biológica e que não é incompatível com atraso mental.

DSM III (1980): pela primeira vez o “autismo” é considerado como uma entidade separada; define autismo como uma perturbação pervasiva do desenvolvimento, diferente da esquizofrenia, envolvendo três domínios: 1) falta de resposta aos outros (autismo); 2) dificuldades grosseiras das competências de comunicação; e 3) respostas bizarras a vários aspetos do meio; todas estas situações aparecem nos primeiros 30 meses de vida.

DSM III - R(1987): cria uma definição mais complexa da perturbação autística que existe se 8 de 16 critérios forem verificados em três domínios: interação social, comunicação e interesses ou atividades restritos; deixa de ser necessário que o início se verifique nos primeiros anos de vida e cria uma nova categoria: “Perturbação Pervasiva do Desenvolvimento Sem Outras Especificações” -  (“Pervasive Developmental Disorder, Not Otherwise Specified (PDD-NOS)” – para as crianças que cumprem alguns critérios de diagnóstico para perturbação autística, mas não suficientes para o seu diagnóstico.

DSM IV (1994) e DSM-IV - TR(2000): refinamento adicional dos critérios complexos de perturbação autística; aumenta o número de perturbações pervasiva do desenvolvimento para cinco, com inclusão do Síndroma de Asperger e de Rett.

DSM 5 (2013): considera a perturbação do espectro do autismo (PEA) em termos de duas categorias de critérios, que devem estar presentes desde a infância: 1. Défices persistentes da comunicação social e da interação social através de múltiplos contextos (nestes critérios estão incluídas a comunicação verbal e não verbal, a partilha de emoções e défices em desenvolver, manter ou compreender relações); e 2. padrões restritos e repetitivos do comportamento, interesses ou atividades  (nestes critérios estão incluídos entre outros comportamentos as rotinas obsessivas e a hipo ou hipersensibilidade sensorial). Em cada critério são considerados 3 níveis de gravidade (1: necessidade de apoio; 2; necessidade de apoio substancial; 3: necessidade de grande apoio). O DSM-5 elimina a síndroma de Asperger, o PDD-NOS e outras categorias tais como o autismo atípico; o diagnóstico obriga a especificação da presença ou ausência de défice intelectual, de dificuldades de linguagem ou de condições médicas ou genéticas associadas.

ICD 11 (2022): a 11ª versão da classificação internacional das doenças com fins estatísticos e patrocinada pela OMS, foi apresentada pela primeira vez em 2018 vai entrar em vigor no dia 1 de janeiro de 2022; nesta classificação (versão 05/2021) as PEA (código 6A02) são caracterizadas pelo défice persistente na capacidade de iniciar ou manter uma interação social recíproca, a comunicação social, e por uma panóplia de padrões de comportamento restritos, repetitivos e inflexíveis, e em que os interesses ou atividades são claramente atípicos ou excessivos para a idade ou para o contexto sociocultural do indivíduo. O início ocorre durante a fase inicial da infância, mas os sintomas podem só tornar-se evidentes mais tarde, quando as necessidades sociais excedem as capacidades limitadas. Os défices são suficientemente graves para prejudicarem o funcionamento pessoal, familiar, social, educacional, ocupacional ou outras áreas importantes do funcionamento e em regra outros aspetos pervasivos do funcionamento do indivíduo são observáveis em todas as situações, embora possam variar de acordo com o contexto social, educacional ou outro. Os indivíduos ao longo do espectro exibem uma gama completa de funções intelectuais e de capacidades de linguagem. A PEA é considerada uma das perturbações do neurodesenvolvimento. São consideradas ainda 7 subcategorias de PEA: 6A02.0: PEA sem perturbação do desenvolvimento intelectual e com linguagem funcional normal ou quase normal; 6A02.1: PEA com perturbação do desenvolvimento intelectual e com linguagem funcional normal ou quase normal; 6A02.2: PEA sem perturbação do desenvolvimento intelectual e com linguagem funcional comprometida; 6A02.3: PEA com perturbação do desenvolvimento intelectual e com linguagem funcional comprometida; PEA: 6A02.5; PEA com perturbação do desenvolvimento intelectual e com ausência de linguagem funcional; finalmente são consideradas duas categorias residuais: 6A02.Y: outras PEA especificadas; 6A02.Z; PEA não especificada. O síndroma de Rett é excluído.

Nesta breve descrição focamos evolução dos conceitos médicos do autismo, em que a enfase é dada aos défices e não aos pontos fortes das pessoas com autismo, que em muitos domínios podem ter mais capacidades que as pessoas neurotípicas. Judy Singer considerou em 1998 [iv] o autismo como uma situação de neurodiversidade. Será que está na hora de uma mudança de paradigma [v]? Em futuros textos regressaremos a estes conceitos.

Fernando Campilho
Presidente do Conselho Executivo da FPDA

Referências Bibliográficas:

[i] Baker Jefffrey: Autism at 70 – redrawing the Boundaries; N Engl J Med 2013: 369;12.

[ii] Leon Eisenberg and Leo Kanner: Childhood schizophrenia, symposium 1955 – 6 - early infantile autism, 1943-55; 1955, Am J Orthopsychiatry 1956; 26:556-66.

[iii] Kanner L. Autistic disturbances of affective contact. Nervous Child 1943; 2:217-50.

[iv] Singer, J.: Odd people in: the birth of community amongst people on the “Autistic Spectrum”, 1998, Sydney, NSW Faculty of Humanities and Social Science, University of Technology, Sydney.

[v] Pelicano, E; Houting, J den: Annual Research Review: Shifting from ‘normal science’ to neurodiversity in autism science, 2021, Journal of Child Psychology and Psychiatry, online ahead print, nov 3, 2021; doi: 10.1111/jcpp.13534.

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